#1 Contos Esdrúxulos - Visita Intima



Era manhã de um domingo frio e chuvoso de julho. Uma sensação de mal-estar e desconforto parecia ser unânime entre guardas e detentos daquele pavilhão. Aos poucos os cochichos e risadas foram se calando, os aparelhos de rádio que os policiais portavam pareciam entrar em uma frequência única em que apenas um leve chiado se fazia ouvir e a luz fraca oscilava. Um dos homens que fazia plantão na sala de monitores se levantou, foi atrás dos painéis, desligou central de monitoramento de câmeras, sentou novamente em seu posto e, assim como seu parceiro, permaneceu estático olhando os monitores desligados.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac...
O som de um velho relógio de parede ecoava nas celas e corredores por minutos que pareciam durar a eternidade.

Em uma das celas lotadas um dos detentos se encaminha até a porta, que havia sido destrancada por um comando tempos atrás vindo de outra sala, a abre calmamente e sai Caminha até o final do corredor, desce um lance de escadas, outro e outro. No térreo um guarda abre o portão duplo que separa a comunidade carcerária dos guardas, o detento passa e nenhuma palavra é dita.  Trêmulo e com medo, aquele jovem, que tinha entre vinte e vinte e cinco anos, continuou caminhando até chegar a uma porta de madeira de má qualidade coberta por uma tinta cinza e uma placa que dizia “Visita Íntima – 02”.
Na frente dela mais um carcerário, abriu a porta, o jovem entrou, trancou-a, passou a chave dando duas voltas na fechadura e saiu.

Lá dentro, uma luz fraca iluminava a sala pequena com paredes mofadas pintadas de branco, com frases rabiscadas dizendo todo tipo de coisa. No centro uma mesa retangular de alumínio fixa no chão com um par de cadeiras, uma em cada lado. Em uma das cadeiras, com os cotovelos apoiados na mesa aguardava um homem de aproximadamente trinta anos, cabelos castanhos, óculos de grau, usando camisa cinza e jaqueta preta por cima. Seus olhos estavam fixos no prisioneiro, não esboçava nenhuma reação, apenas ordenou em tom sério:
- Senta!
O jovem acatou o comando e sentou-se na outra ponta da mesa exatamente na frente daquele homem.
- Faz pouco mais de um ano que está aqui, lembra por que? – Um leve sorriso de canto de boca – É claro que lembra, pensa nisso todos os dias dessa sua vidinha de merda. Fica se perguntando como que fez o que fez e criando coragem para se matar, mas não consegue.
O detento com os olhos cheios d’água permanecia sentado enquanto o homem juntou as mãos, apoiando-as na nuca, olhou para o teto, esticou a coluna e voltou a falar.
- Naquela noite, minha noiva e eu saímos para comemorar o novo emprego dela. Depois de cinco anos de formada ela finalmente havia conseguido algo na área dela. Direito... sabe o quanto é difícil conseguir algo em Direito? Mas ela conseguiu e tão contente – voltou a olhar para baixo e parecia feliz em lembrar daquilo – ia começar a trabalhar no início do próximo mês como analista jurídica de uma construtora no centro da cidade. Era para ser uma noite incrível – fixou novamente os olhos no jovem –, mas você apareceu.
- Eu vi aquele bando de playboyzinhos chegando em seus carros importados, presente de um papaizinho frustrado que mima os filhos achando que assim compensa o fato dele trair a mãe das crianças com prostitutas baratas. Eu vi a hora que vocês ocuparam a mesa na nossa frente e já bêbados continuavam enchendo a cara e falando alto. Mas por mais babaca que um bando de moleques possam ser, eu nunca imaginaria que quando voltasse do banheiro um desses garotos esteja tentando agarrar a minha noiva enquanto ela grita para parar no meio de um restaurante como aquele.
- Fui pra cima dele, mas você e seus amigos me seguraram. Você levantou um pouco sua blusa me mostrando a Glock G25 que trazia na cintura, naquele momento eu sabia “eu” não podia fazer muita coisa, mas “nós”... – soltou uma risada debochada enquanto balançava a cabeça.
- Você então puxou a pistola, apontou para o arrombo que estava sufocando minha noiva e PAH! Seus amigos olharam assustados sem entender nada e PAH! PAH! PAH! Todos os disparos certeiros bem na cabeça de cada um dos seus namoradinhos. Aposto que nem no seu melhor dia você conseguiria fazer isso, mas graças a minha ajudinha foram quatro tiros e quatro amiguinhos mortos.
O prisioneiro, que a essa altura já estava soluçando de choro, continuava a escutar, como quem não tivesse outra escolha.
- O que? Você... sério? Achou mesmo que foi você que disparou contra seus amigos naquela noite? Acha mesmo que sua mira é tão boa assim? Talvez você poderia ter pego aquela arma e atirado em mim se eu insistisse em tentar salvá-la, mas preferi não arriscar. Usei você como fantoche para acabar com aquela “brincadeira” que você e seus amigos insistiam em fazer. E olha só onde você veio parar.
O homem abaixou, pegou uma sacola, levantou-se, tirou do saco um pote com o que parecia ser uma lasanha estragada, passou por trás do detento e então colocou o pote em sua frente. Em um lado colocou o garfo e, deslizando a faca pelo pescoço do jovem colocou-a do outro lado. Pousou as mãos em seu ombro e retomou o discurso:
- Há um mês estive na sua casa, jantei com sua família. Seu pai, gentilmente me ofereceu um apartamento duplex mobiliado numa área nobre da cidade, uma poupança de oitenta e seis mil reais e uma lancha em Búzios. As férias da família deviam ser incríveis naquele barco, não é mesmo? Ele queria me oferecer mais coisas, mas se eu aceitasse tudo poderia acabar levantando suspeitas, não é todo o dia que um professor de ensino médio recebe tantos presentes. E quanto ao barco eu recusei, disse que ele podia aproveitar para dar um belo passeio com sua mãe. E cá entre nós – chegou perto do ouvido do garoto e disse baixinho – acho que gostou da ideia, já que eles estão desaparecidos faz cinco dias e testemunhas dizem que a última vez que foram vistos foi no Iate Club da cidade, pouco antes de subirem a bordo.
- Sua mãe me fez um pedido muito comovente, ela chorava muito na ocasião. Ela pediu que eu lhe trouxesse um pedaço da lasanha que você tanto gostava, que aliás quem fazia era a empregada. Eu comi a lasanha e realmente estava uma delícia, mas com eu te disse faz um mês que estive com eles, o pedaço que eu trouxe deve ter estragado.
Tirou a tampa do pote e o cheiro de podre infestou a sala. Sobre a massa larvas de moscas e bolor se formavam.
- Saboreie como se fosse sua última refeição.
O jovem pegou o garfo e a faca e começou a comer.
O homem caminhou em direção à porta, duas voltas na chave vindas do lado de fora e um carcerário abriu a porta. Enquanto saía da sala ordenou ao guarda:
- Assim que ele acabar de comer, quero que o leve de volta para a cela.

As luzes voltaram ao normal, as pessoas daquele local foram voltando e pouco tempo depois tudo estava como era antes. Os guardas ligaram novamente as câmeras, as conversas e o barulho... aquele homem foi embora como se nunca tivesse estado ali.
No dia seguinte até os jornais pareciam ignorar o que daria uma bela manchete:

“Jovem milionário que matou quatro amigos em briga de bar comete suicídio em prisão onde cumpria pena e seus pais continuam desaparecidos. ”

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