Um exército de Doutores desempregados
Vou contar uma história para vocês, para que entendam em que ponto a
Ciência brasileira se insere nessa crise. Ao personagem, dou o nome de Carinha.
Obviamente, é uma história generalista, que jamais pode ser aplicada a
todos, mas pelo menos a uma enorme parcela dos acadêmicos. Você verá
muitos amigos seus na pele do Carinha. Talvez, você mesmo.
1 - No
começo dos anos 2000, principalmente a partir de 2005, novas
universidades começam a surgir e o número de vagas, inclusive nas já
existentes, aumenta vertiginosamente. A estrutura também melhora, e as
taxas de evasão de cursos de Ciência básica (Física, Química, Biologia e
Matemática, por exemplo) caem. O Carinha, então, ingressa em um desses
cursos.
2 - O Carinha que entrou em 2005 e se formou em 2009
passou o período da faculdade desconhecendo o mercado de trabalho do seu
curso fora do meio acadêmico. Ao seu lado, muitos colegas que passaram
quatro anos sem saber nem o que estavam fazendo. Para o Carinha, não
havia outra solução a não ser lecionar em escolas ou tentar o Mestrado,
que oferecia bolsa de pesquisa de R$ 1.100,00. Mas, para isso, teria que
passar por uma difícil e concorrida seleção. Até que, com o aumento do
número de programas e bolsas de pós-graduação, ele viu então que aquilo
não era tão difícil assim. Em 2010, torna-se mestrando.
3 -
Enquanto seu amigo engenheiro civil****, recém-formado, já está dando
entrada para comprar um carro, o Carinha usa sua bolsa para pagar seus
pequenos gastos pessoais, além de sua pesquisa sem financiamento
externo.
(****P.S.: Permitam-me uma edição aqui. Fui infeliz
quando exemplifiquei o colega como um engenheiro civil, pois o mercado
para esse profissional atualmente também encontra-se em crise. Tente
imaginar qualquer profissão facilmente absorvida pelo mercado de
trabalho privado e o texto continuará com o mesmo objetivo).
Em
dois anos, o Carinha tenta produzir alguns artigos para enriquecer o
currículo. Tem planos para publicar cinco, mas publica um, em revista de
qualis baixo. Em paralelo, entra num forte estresse para entregar sua
dissertação e passar pelo forte crivo da banca, que pode reprová-lo.
Será? Na semana de sua defesa, seu colega também é aprovado, mas com um
projeto medíocre e mal conduzido, que, apesar de criticado, foi
encaminhado pela banca porque reprovações não são interessantes para a
avaliação de conceito do Programa. Normas do MEC.
4 - Já mestre,
publica mais um artigo e entra no Doutorado, em 2012. Foi mais difícil
que o Mestrado, porém mais fácil do que teria sido anos atrás, por conta
do bom número de bolsas disponível. Boa parte daqueles colegas medianos
desiste da vida acadêmica, mas aquele dito cujo sem perfil de cientista
de alto nível também é aprovado. Afinal, ter bolsas desocupadas não é
interessante, porque senão o Programa é obrigado a devolvê-las. Normas
do MEC.
5 - Sua bolsa de R$ 2.500,00 já ajuda um pouco sua
condição financeira, enquanto aquele colega engenheiro conta sobre sua
primeira casa própria. Além disso, o amigo já contribui com o INSS, tem
seguro desemprego, 13º salário, plano de saúde, cartão alimentação,
entre outros benefícios. O Carinha não, tem só a bolsa e um abraço.
Normas do MEC. Mas, tudo bem, é um investimento em longo prazo. Logo
menos, ele tentará um concurso para ser professor universitário, com
iniciais de cerca de R$9.000,00. Ele se esforça, publica artigos, dá
aulas, redige a Tese, defende e é aprovado. O colega mediano faz um
terço disso, mas também alcança o título.
6 - Eis que, em 2016,
Doutor Carinha se depara com uma grave crise financeira. Cortes
profundos no orçamento, principalmente no Ministério da Educação, tornam
escassas as vagas como docente. Concursos em cidades remotas do
interior, antes com dois, cinco concorrentes no máximo, contam hoje com
30, 50, 80... A solução então é caminhar urgentemente para um
Pós-Doutorado, com bolsa de R$ 4.100,00, metade do que ganha seu amigo
engenheiro, mas ok, dá um caldo bom, ainda que continue sem direitos
trabalhistas. Pouco tempo atrás, as bolsas sobravam, e os convites eram
feitos pelo próprio professor. Hoje, ele enfrenta uma seleção com 30.
Ele passa, o outro colega já fica pelo caminho, assim como centenas
espalhados pelo País. O que eles estão fazendo agora?
O resumo da história é... Temos
um exército de graduados analfabetos funcionais e de mestres que não
merecem o título. Em um pelotão menor, mas ainda numeroso, doutores cujo
diploma só serve para enfeitar a parede. Bilhões de reais gastos para
investir e manter um grupo cujo retorno científico é pífio para o País. Entretanto, esse não é o pior cenário.
Alarmante
é ver um outro exército de Carinhas, esse qualificado, com boas
produções, só que desempregado e enfrentando a maior dificuldade
financeira de suas vidas. Alguns há anos em bolsas de Pós-Doutorado, sem
saberem se essas podem ser cortadas no ano seguinte. Se forem, nenhum
mísero centavo de seguro desemprego. Na rua, ponto. Outros abandonando
por vez a carreira para tentar os já escassos concursos públicos em
outras áreas ou mesmo para fazer doces caseiros, entre outras
alternativas.
Ao passo que o governo acertou na criação de novas
universidades, programas e bolsas de pós-graduação nestes últimos 14
anos, a gestão desse material humano e financeiro foi bastante
descontrolada. Quantidade exacerbada de cursos criados sem demanda
profissional, falta de política de cargos e carreiras para o cientista
brasileiro, recursos transportados para um programa de intercâmbio que
não exigia praticamente nenhum produto de um aluno de graduação, critérios de
avaliação bem distantes da realidade das melhores universidades do
mundo, além de uma série de outros absurdos.
Teremos cerca de dez
anos pela frente para que essa curva entre oportunidades e demanda volte
a estabilizar. Não tenho dúvidas de que alcançaremos isso. Mas, até lá,
cabe a pergunta. O que faremos com os novos Carinhas que ainda surgem a
cada vestibular?
* Publicado originalmente no blog Tribuna Científica
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